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Preto no Branco: Episódio 2

  • policiasdadoxa
  • 30 de jun. de 2021
  • 7 min de leitura

Por Agente Cogito

(CONTINUAÇÃO PARTE 2)


Caros leitores, depois da reflexão exposta na Parte 1, texto esse publicado anteriormente no nosso site e redes sociais, importa agora continuarmos esta análise, colocando várias questões pertinentes.


Como sabemos, o racismo é um problema demasiado grave para ser “banalizado”, encapotado ou esquecido. Muitas vezes, até sem conhecermos bem os factos, somos levados a levantar a questão do racismo, de forma quase imediata e inconsciente, mal exista uma situação de “confronto” entre duas pessoas de etnias diferentes, como é o caso de uma situação que envolva um branco e um negro.


Face a isto, considero importante nunca cometermos a falácia da generalização precipitada, ou seja, nem todas as pessoas são racistas ou xenófobas, não é por serem de uma etnia que o são de forma automática, sejam elas brancas ou negras.


Na minha perspetiva, o caminho passa por analisar as situações de forma casuística, olhando caso a caso, de acordo com os intervenientes, tendo em conta o contexto e a situação em questão. Por fim, dependendo da resposta que obtivermos nos dois passos anteriores, é importante sabermos como reagir e interpretar os factos.


Para mim, este também é um dos problemas que considero urgentes de resolver: perceber o que é e o que não é racismo, sob pena das reais situações deixarem de ter a gravidade que têm, pois acabam por entrar na “banalidade” do dia-a-dia, na banalidade do bate boca das redes sociais, na banalidade dos contra-argumentos em caixa de comentário de uma publicação, coisa que não podemos deixar que aconteça.


Neste sentido, para transmitir melhor a minha ideia, sugiro que façamos uma viagem e imaginemos um casting, nos bastidores de um teatro grego, em a peça tem como responsável o Zeca, um ilustre profissional na área da representação. Existem apenas dois lugares e há quatro candidatos.


A representação, pelo menos no guião, será de uma luta entre dois gladiadores muito fortes e altos, em que (1) um deles vai ser violentamente atacado pelo outro, depois de beber bebidas alcoólicas e estar visivelmente embriagado, não se conseguindo defender na luta (papel principal, melhor remunerado e com mais interesse) e (2) um outro gladiador que agride de forma selvática e sem dó nem piedade (papel secundário, pior remunerado e com menos interesse).


Como candidatos temos:


(1) o Pedro, rapaz de um metro e setenta e três, grego, branco, de cabelo curto e com bastante experiência na área da representação;


(2) o Cláudio, rapaz de um metro e setenta e cinco, elegante e bem parecido, negro, de descendência africana, cabelo curto e com três cursos universitários de representação;


(3) o Joaquim, rapaz de um metro e cinquenta, grego, branco, muito magro, careca e sem qualquer experiência na área;


(4) Por fim, temos o Zé Chouriça, que não sabemos a sua aparência, uma vez que ainda não apareceu;




Ou seja, apenas o Pedro e o Claúdio cumprem os requisitos do guião para desempenharem o papel de gladiadores.


Muito bem, estão todos a imaginar a situação? Vamos prosseguir.


Imaginemos que o Cláudio, o rapaz negro, conseguiu o papel principal, não só pela sua grande capacidade e talento, como pela sua simpatia. O Zeca, que era o responsável pela peça, ficou mesmo encantado e adorou-o. Atrevo-me a dizer que o seu casting foi brilhante.

Após a sua representação no teatro, parecendo mesmo estar alcoolizado e simulando na perfeição a violenta agressão que “sofreu” do outro gladiador, muitos foram os elogios à sua atuação, naquele papel que era só mesmo para os melhores, dada a sua exigência.


No entanto, rapidamente surgiram comentários e críticas ao Zeca (responsável pela peça), principalmente nas redes sociais. Chamaram-no de xenófobo, oportunista, racista e até criaram uma petição para ele nunca mais estar à frente de qualquer peça de teatro.


Isto tudo porque tinha escolhido alguém de etnia negra para representar o papel de um gladiador alcoólico que foi violentamente agredido na arena.


A questão é: será que estamos perante um caso real de racismo? Creio que não. Aliás, o papel com maior destaque e dificuldade, o papel principal, até com uma remuneração melhor, foi mesmo para o Cláudio. Neste caso, até tenho pena do Zeca, porque não teve qualquer atitude racista.


Mas, como em tantos outros casos, a bandeira do racismo foi, mais uma vez, levantada de forma inconsciente, “banal”, imediata e descontextualizada, percebendo-se depois que, afinal, não tinha havido racismo por parte do guionista (pena só se ter percebido isso depois da petição já ter três mil assinaturas e do Zeca ter sido obrigado a apagar as suas redes sociais em consequência dos ataques que sofreu).


Porventura, partindo deste cenário que imaginei convosco, muitas seriam as outras situações em que poderia existir, efetivamente, racismo:


Comecemos pela situação em que o Zeca tinha, afinal, escolhido o Cláudio porque tinha intenções que fosse alguém de etnia negra a representar aquele papel, uma vez que lhe dava prazer ver aquela situação. Neste caso, há uma clara situação de racismo e até uma dose de loucura, situação que temos de combater e repudiar, em todo e qualquer caso. No entanto, terá que haver este exercício prévio de perceber o que se passou realmente.


Numa outra situação, podíamos questionar-nos se existiria racismo se Zeca tivesse antes escolhido o Joaquim (baixinho e magrinho) deixando de fora o Cláudio. Se bem se lembram, o Joaquim era magro e muito baixo, nem tinha qualquer experiência profissional, ou seja, não era a pessoa adequada e não tinha a fisionomia para ser um gladiador, de acordo com o guião, tendo em conta toda a situação do casting.


Aqui, teríamos de perceber o contexto e as motivações da escolha de Zeca, sendo um potencial caso de racismo, logo, mais uma vez, um caso de total repudio e condenação, mas que exigiria este exercício de análise consciente.


Noutra situação, imaginemos que Zeca tinha escolhido o Cláudio para o papel secundário, com menos destaque e pior remunerado, para o papel de gladiador vencedor e agressor. Neste caso, de certeza que teríamos, pelo menos, três possíveis interpretações:


1. Zeca era racista e não queria dar o melhor papel ao Claúdio, metendo-o no papel secundário, tomando esta decisão porque não gosta da sua cor de pele. Aqui há, obviamente, racismo.


2. Zeca quis dar este papel ao Claúdio porque queria simbolizar que as pessoas negras eram agressivas e batiam violentamente nas outras pessoas, mesmo sabendo que o outro gladiador estava alcoolizado, não demonstrando compaixão. Há, novamente, racismo. Temos de repudiar, condenar e combater.


3. Zeca, simplesmente, gostou mais do Pedro do que do Cláudio, sem sequer pensar na questão das suas origens ou etnias, dando o melhor papel ao Pedro.




Imaginem agora que a decisão se baseou no terceiro ponto e eu, ao saber da história, sem sequer saber o que se passou realmente, enviasse logo uma ameaça ao Zeca e o fosse denegrir e julgar em praça publica e nas redes socias? Pois é... há danos, neste sentido, que também são irreparáveis e é importante não nos esquecermos disto.

Era exatamente aqui que queria chegar.


Caros leitores, percebemos com isto que estas reflexões exigem uma contextualização, bom-senso e razoabilidade. Mas também percebemos que não podemos, da mesma forma, cair na tentação de sermos ingénuos ou de pensarmos que ninguém é racista, ou que toda a gente tem boas intenções, o que não é verdade, como bem sabemos.


Convido-vos a utilizarem o método do véu da ignorância, tentando imaginar que estão na pele do Zeca, do Cláudio, do crítico do Twitter, do Pedro e do Joaquim. Conseguem pensar em todas essas posições? Pois bem, esse terá de ser o ponto de partida para uma sociedade mais justa, correta e igualitária.


A adequação, o bom-senso, a razoabilidade, a boa-fé e a proporcionalidade, ao interpretar as palavras e os contextos, são figuras que temos sempre de adotar. Não podemos cair no descrédito que o Pedro passou na história do “Pedro e o Lobo”.


Eu próprio caio neste erro várias vezes, mas não faz sentido querermos interpretar, imediata e cegamente, de forma errada o que não foi dito com maldade ou preconceito. Mais uma vez, o equilíbrio, a noção e o bom-senso são fundamentais nesta nossa reflexão, pois o problema está na terminologia, no contexto e no tom utilizado.


Por exemplo, se eu disser que me vi grego a fazer este texto, de certeza que o Zeca, o Pedro e o Joaquim, que são gregos, não me vão interpretar mal, ainda por cima sabendo que gosto e respeito muito a Grécia e os gregos. Mas já não será assim se eu disser que os gregos não sabem fazer peças de teatro porque, simplesmente, são gregos.


É fundamental não termos ações ou reações destituídas de sentido, temos de “respeitar” a palavra racismo e o seu simbolismo, o seu peso, evitando o caminho imediato da demagogia, tantas vezes utilizado por políticos como André Ventura ou Joacine Katar Moreira. O caminho passa por fomentar e regar a planta da pedagogia e da mudança das mentalidades.


Mais uma vez digo: não interessa abrir cabeças, interessa abrir mentes. Esta missão cabe a cada um de nós, cidadãos de Portugal e do Mundo, a cada momento ou conversa, todos os dias, a toda a hora e em qualquer lugar.


A chave do enigma está na educação que tem de ser dada aos jovens e às crianças, educando-as de forma a respeitarem o próximo, fazendo-as perceber que jamais poderão odiar outra criança por esta ter uma aparência, uma característica ou um pensamento diferente.


Aos adultos, o melhor conselho que dou é não perderem a criança que têm em si, educando-a também, acabando, de uma vez por todas, com a frase “eu não sou racista, mas…”.


Meus senhores e minhas senhoras, exemplos como Auschwitz têm de servir para percebermos que o Homem é capaz de cometer as maiores atrocidades pela sua incapacidade de tolerar a diferença.


É frustrante não me poder alongar mais, uma vez que o texto já vai muito longo, até com duas partes, havendo ainda tanta coisa para dizer.


Concluindo esta nossa reflexão, quero apenas deixar um desejo que gostava de ver concretizado, quase tanto quanto Martin Luther King queria que o seu sonho se cumprisse: que a etnia de cada um de nós seja tão relevante como, neste texto, foi o papel do Zé Chouriça, o quarto candidato do casting, que continua sem aparecer.


A solução não está em continuarmos a proteger as “minorias”, está sim em educar as “maiorias” e a sociedade.


Agente Cogito



 
 
 

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