O movimento #MeToo chegou a Portugal.
- policiasdadoxa
- 23 de mai. de 2021
- 5 min de leitura
Por Agente Púrpura
Pausa, abrir parênteses. Já pararam para pensar em como a nossa convivência com o assédio foi, desde sempre, um cenário normalizado? Cresci a ouvir piropos, alguns até categorizados como “o típico piropo tuga engraçado”, quase como se fossem uma tradição que passa de boca em boca. Não, eu não sou uma estrela e não quero um cometa.
E os filmes que passam em televisão nacional, alguns em horário nobre, onde se verifica o típico cenário de uma comédia romântica: mulher trabalha como secretária, colega - homem - dá-lhe uma palmada no rabo, às escondidas, junto à máquina das fotocópias. Mulher está a trabalhar no computador, colega - homem - sente a necessidade de lhe tocar nas costas ou no cabelo enquanto lhe pede algo. Ou mulher trabalha como assistente, chefe - homem - sugere-lhe uma promoção, em troca de uma noite de sexo escaldante como fuga à rotina e ao casamento monótono com a mulher que está em casa a cuidar dos filhos. Em todos os cenários descritos, desenha-se uma mística de adrenalina e entusiasmo, provocada por um sentimento sórdido, por querer o fruto proibido. O objectivo é romantizar e dissimular uma conotação de love affair a situações que são, única, pura e simplesmente, palco de objectivação e assédio sexual em local de trabalho. Víamos o filme, ríamo-nos e desvalorizávamos.
Fechar parênteses. O movimento #MeToo chegou a Portugal.
Nas últimas semanas, incentivadas pela coragem de Sofia Arruda, foram várias as figuras femininas portuguesas que se chegaram à frente e afirmaram “eu fui vítima de assédio sexual”, maioritariamente em contexto laboral.
As reacções foram várias: balançamos entre uma maioria que demonstrou o seu apoio à coragem e força das vítimas, que contrastou com a parte contrária, adepta do descrédito aos testemunhos relatados. Gostava de me poder restringir a agradecer e glorificar a primeira parte, que tão bem se expressou; no entanto, e infelizmente, o foco desta reflexão terá de se prender nas reacções surgidas em jeito de “olha outra”, “lembraram-se todas agora”, “e se se preocupassem com coisas importantes?” ou “dá-lhes j€ito falar€m disto”.
Sejamos claros: a falta de educação e empatia em Portugal, em assunto de violência de género, é avassaladora.
Num assunto como o #MeToo, porque é que a conduta do público se sustenta num #YouToo? (“Tu também?”), num tom de ridicularização da gravidade da situação?
Após séculos de silêncio em relação às afrontas de uma sociedade patriarcal, caminhamos lentamente para uma sociedade mais justa e igualitária. Ainda assim, diariamente, mulheres são vítimas dos mais variados abusos: quando não é físico, é moral ou psicológico. Raras serão as que têm a oportunidade de dizer que nunca foram assediadas ou que nunca ouviram um comentário indesejado, capaz de estragar a disposição para o resto do dia.
Por esta altura, não sabia ser necessário ter de definir o que é assédio; no entanto, há quem insista em querer desvalorizar as situações com “agora já não se pode dizer nada, é tudo assédio...”. De facto, a linha pode parecer ténue, quando equiparado com flirt, por exemplo, mas torna-se altamente explícita quando uma das partes não se sente confortável nem sequer permite qualquer abordagem, convite ou insinuação de cariz sexual e/ou físico. Isso é assédio.
Em Portugal, o assédio sexual está inserido no artigo 170.º do Código Penal, referente ao crime de importunação sexual, mas não existe por si só; não é um crime autonomizado na lei. O crime referido é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. A multa torna-se sempre a punição privilegiada, acabando por se tornar numa sanção de natureza simbólica; não conheço nenhum caso que tenha recebido pena de prisão efectiva.
Por sua vez, o artigo 29.º do Código do Trabalho dedica-se unicamente ao assédio (sexual) em contexto laboral. Ainda assim, embora mais completo e abrangente do que o artigo anterior, o artigo 29.º do Código de Trabalho não é tido como um crime, mas sim com uma contra-ordenação muito grave, o que corresponde a uma multa que aumenta consoante a gravidade do caso (além da vítima ter direito a uma indemnização).
Ainda assim, o quadro legal para o assédio em Portugal não é suficiente para criar condições seguras e favoráveis à vítima. O maior trabalho tem de ser feito ao nível da prevenção; a condenação não é suficiente pois, na maioria dos casos, a vítima não se sente sequer segura para denunciar, logo é impossível haver qualquer tipo de responsabilização.
A educação é o agente de mudança. A quem dirige uma empresa, recomendo o “Manual e materiais de formação sobre prevenção e combate ao assédio sexual e moral no local de trabalho”, desenvolvido pela Professora Anália Torres e disponível online em www.assedio.cite.gov.pt.
A criação e manutenção de um ambiente de trabalho assente em pilares como o respeito, o profissionalismo, a segurança e a igualdade é fundamental.
Quando já nem o local de trabalho lhes vale, as vítimas merecem ter o direito a um espaço seguro de denúncia: muitas mantém-se caladas pelo receio de mexer com status quos e de perder jogos de poder com figuras superiores, que lhes podem custar uma carreira. No fundo, os assediadores valem-se disso porque sabem que o medo vai ser sempre superior à gravidade da sua própria conduta. O silêncio protege quem assedia: a garantia de confidencialidade e segurança às vítimas é o ponto-chave para o primeiro passo.
E nós, enquanto sociedade, temos o dever de ser melhor. A confrontação social a que assistimos e a descredibilização inerente às situações denunciadas são tão tóxicas como o próprio assédio. É paradoxal a forma como há o incentivo geral para a denúncia (que, agora percebo, é pura curiosidade e mesquinhice do ser humano) e depois falta o apoio e o respeito. Não podemos relativizar; não são só brincadeiras; são traumas que ficam.
Podem contra-argumentar com a existência de falsas denúncias, embora sejam um número muito pequeno, para descredibilizar os testemunhos que vão surgindo. A isso, o acusado dispõe de todos os meios legais para se defender do crime de difamação. Por aqui, eu prefiro acidentalmente defender um mentiroso do que um criminoso, e assumirei prontamente o erro.
E, se for preciso apelar à família para despertar o mínimo de empatia, invertam a figura e pensem se fosse a vossa mãe, irmã ou filha a viver num ambiente laboral castrador, inseguro e propício à prática da discriminação de género.
Abrir parênteses. Parece-me importante esclarecer que me refiro neste texto ao homem como assediador e à mulher como vítima porque, efectivamente, as estatísticas comprovam que a maioria das situações de importunação sexual partem do domínio masculino. Ainda assim, a vítima não escolhe géneros, muito menos há qualquer interesse em difamar o homem em praça pública. Fechar parênteses.
“They are innocent until proven guilty. But not us. We’re liars until proven honest.”
A todas as grandes Mulheres que se manifestaram e usaram a sua exposição para dar voz às que, por enquanto, se silenciam: obrigada pela coragem, pela solidariedade e pelo incentivo. Que seja feita justiça. Enquanto não formos todas livres, não haverá liberdade para nós.
Agente Púrpura

Fotografia por @victorvrealx
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