O megafone da libertação
- policiasdadoxa
- 20 de jul. de 2021
- 4 min de leitura
Por Yuliya Kalapuz
Assédio. Quando penso em assédio vem-me à mente a seguinte comparação: é como bater com o dedo do pé no canto de um móvel, se acontecer já ninguém se surpreende porque é algo recorrente, ainda assim cada vez que batemos doí-nos, independentemente das vezes que acontecer.
O assédio é, igualmente, algo que acontece diariamente e a sua constante repetição levou à sua banalização na nossa sociedade. Atualmente, se alguém disser que foi assediado ninguém se espanta, mas nunca deixa de ser desconfortável, levando-nos inúmeras vezes a questionar a nossa própria dignidade. Não quero abordar a temática do assédio como um problema de género, mas sim como um problema em si. Acontece a todos. Homens ou Mulheres. Jovens, Adultos ou Crianças. Ainda que estatisticamente a maioria das vítimas de assédio sejam mulheres e isso é inegável.
A questões que se colocam são, qual foi o propósito do comentário com caracter sexual que foi feito? Porque é que buzinaram quando eu estava tranquilamente a atravessar a rua? Porque é que assobiaram? Porque é que ficaram a olhar para mim durante imenso tempo? Porque é que se tentaram aproximar de mim no metro ou autocarro? Porque é que sorriram e piscaram-me o olho durante uma conversa séria no trabalho? Depois começas a pensar sobre o que acabou de acontecer e as questões inundam a tua mente, quase te fazendo afogar nos próprios pensamentos. Será que estava vestida de uma forma incorreta? Será que é tudo da minha cabeça? O que é que as pessoas vão dizer? Será que me vão achar louca porque fiquei desconfortável com um olhar? Será que vão dizer que estou a ser dramática? Será que vão dizer que fui eu que incentivei a própria situação?
Será que a verdadeira razão pela qual a prática de assédio é tão recorrente é a educação? Desde novas, as mulheres são bombardeadas com restrições, tanto na escola, desde o momento em que as professoras chamam à atenção para não usarem calções, vestidos ou camisolas curtas para não distraírem os rapazes, tanto em casa, quando os pais proíbem vestir determinadas roupas e estão constantemente a avisar para terem cuidado e não ficarem fora de casa até tarde. Se forem sair para terem cuidado com as bebidas, para andarem sempre acompanhadas pelas amigas. Tantos cuidados e avisos para evitar que se tornem vítimas, mas haverá o mesmo cuidado para que não haja predadores?
Porque é que ao invés de criarem restrições quanto ao vestuário das mulheres, os professores não falam sobre a importância do respeito para com os outros e do consentimento? Porque é que ainda que os pais confiem nos filhos não falam sobre a importância de ter limites, de não se aproveitar de alguém quando este está numa posição vulnerável? Diversamente há a preocupação de falar sobre métodos contracetivos indispensáveis presentes nas suas carteiras. Porque é que estamos constantemente focados em afastar a atenção daqueles que assediam? É absurdo como no final do dia a pessoa que foi assedia tem mais vergonha do que aquela que assediou.
Será assim tão difícil perceber que andamos a lidar com este problema crónico de forma incorreta? Hoje em dia, a nossa sociedade tem maior tendência em querer proteger as vítimas ignorando o verdadeiro problema, e eu consigo perceber isso quando alguém que assedia outra pessoa nem se apercebe que fez algo incorreto, algo que deixou outra pessoa desconfortável, algo completamente desrespeitoso, não sentindo quaisquer remorsos pelas palavras que lhe saíram da boca ou comportamentos que teve por impulso.
Somos todos seres humanos desenvolvidos, tanto emocionalmente como racionalmente, então porque é que continuamos a seguir os impulsos animalescos?
Pego no exemplo que mencionei, de nas escolas haver uma maior chamada à atenção para a roupa que as raparigas usam do que preocupação em usar esse tempo para explicar a importância do respeito mútuo e do consentimento. Uma vez mais, podemos apurar que a sociedade parte do pressuposto que a culpa recai sobre as costas de quem distrai e não sobre quem se sente distraído. Há uma constante e incansável culpabilização da vítima. Podem tentar provar-me o contrário, mas isto é um facto. Prestem atenção aos casos de violações, onde muitas vezes a vítima é chamada de mentirosa ou criticada pela forma como estava vestida, ignorando completamente que o próprio ato de violação já faz com que a vítima se sinta completamente humilhada e impotente, e no final do dia ainda tem de defender o que resta da sua honra. Honestamente, não me surpreende que muitas vítimas preferem ficar calada a levar o caso para tribunal. Quando o sistema que te deveria defender, defende aquele que te ofendeu, então o que é que é suposto esperarmos?
Até podem sustentar que há casos em que as mulheres mentem para se aproveitar dos meios financeiros e reputação dos homens em questão ou por outra razão qualquer. E no âmbito desta linha de pensamento, coloco-vos então uma questão: mesmo que a vítima tenha mentido, no final do dia vocês preferem defender um mentiroso ou um violador? Por quem vocês querem tomar o risco? Deixo esta questão para vocês refletirem sobre ela.
Por fim, queria ainda falar do papel passivo da nossa sociedade. Hoje em dia, as pessoas vivem com o lema “cada um por si”, levando muitas vezes a que, apercebendo-se de uma situação em que alguém está desconfortável escolhem seguir com a sua vida porque “não lhes diz respeito”. Pergunto-me, será que as pessoas não intervêm porque adotam um papel de ingenuidade e fazem-se acreditar que aquela situação não tem qualquer maldade, ou assumem um papel de ignorar a verdadeira realidade que está diante dos seus olhos, de que todos os dias alguém é assediado?
Gosto de usar o argumento de “e se fosse alguém da tua família? Se fosse a tua irmã ou a tua mãe?”, mas na verdade esse argumento não é válido, porque independentemente de ser ou não tua irmã, qualquer mulher merece respeito, e não são os laços familiares que fazem com que esse respeito tenha um propósito.
“Não vistas isso”, “Não passes por ali sozinha”, “Ignora”, “Não respondas”. Parem de pôr a responsabilidade do assédio em cima das vítimas, porque elas não são responsáveis pelos impulsos do agressor. Responsabilizem quem de facto errou.
“Estamos-te a avisar para te proteger”. Será proteção ou responsabilização?
Yuliya Kalapuz

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