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O Masoquismo português

  • policiasdadoxa
  • 19 de fev. de 2021
  • 6 min de leitura

Miguel Baptista (convidado)


Andamos distraídos. Na esmagadora maioria das vezes que falamos de política e da sociedade, sobretudo na época de eleições, os holofotes e o mediatismo circulam à volta da mesma personagem: André Ventura.


Por vezes, pergunto-me se toda a onda de movimento contra o seu discurso patético não se questiona também do porquê de o mesmo existir. Diria que, provavelmente, nunca se debruçaram sobre o tema, no entanto, para mim, a resposta é muito simples: o Estado tem falhado.


O Estado, mais concretamente o Governo e a Assembleia da República, têm falhado. O Estado são os cerca de 10 milhões de portugueses que o compõe, mas tem apenas sido de alguns, de uma classe elitista corrupta.


Penso que num país democrático quando se pensa em deputado, pensa-se numa pessoa séria, decente, empenhada e, sobretudo, orgulhosa por representar um conjunto de pessoas que depositaram nele a sua confiança. Contudo, a realidade vivida neste país é bem diferente.


Quando penso em deputado, penso em alguém que se irá sentar na bancada do Parlamento para servir interesses dos grandes grupos económicos, e penso também em advogados que trabalham em sociedades, que elaboram legislação confusa e ambígua para defraudar a lei que eles próprios influenciaram para que fosse feita. Os verdadeiros legisladores são essas mesmas sociedades que servem os interesses dos seus clientes e que depois ganham milhões a explicar a lei por eles elaborada (não admira que haja tanta doutrina).


A proximidade entre interesses privados e o bem público é, à época em que vivemos, a regra vigente da promíscua política nacional. A vida política é hoje interpretada por atores que frequentando simultaneamente os dois mundos, o dos negócios e o da defesa do interesse público, confundem em permanência a lealdade que devem ao povo, com a fidelidade a quem os remunera.


Existem dezenas de deputados que acumulam a função parlamentar com a de administrador, consultor ou advogado de empresas que desenvolvem grandes negócios com o Estado. Por outro lado e já no Governo, o padrão é simples e reiterado: quem dirigiu a privatização passa a dirigir o que privatizou; quem adjudicou a obra pública, passa a liderar a construtora escolhida; quem negociou pelo Estado a parceria público-privada passa a gerir a renda que antes atribuiu, ou vice-versa.


Até quando caros concidadãos? Tendo esta informação disponível à vossa frente, o que pretendem fazer agora? Até onde irá o conformismo?


É óbvio que a promiscuidade anteriormente descrita leva à perpetuação de um fenómeno: a corrupção. Portugal é hoje um dos países, se não mesmo o país mais corrupto da União Europeia, tendo descido 3 lugares no Índice de Perceção da Corrupção de 2020 (estudo publicado pela Transparency International), obtendo 33 pontos numa escala de 0 100, estando assim muito abaixo da média ocidental e da União Europeia (66 pontos).


A título de comparação, países como a Dinamarca e a Nova Zelândia obtiveram 88 pontos no mesmo estudo. É agora ainda mais evidente a razão pela qual Portugal tem índices de desenvolvimento mais semelhantes a países de “3º mundo” do que aos restantes compadres europeus.


Reafirmando esta ideia, recorro às afirmações de Susana Coroado (Presidente da Transparência e Integridade PT): “ao longo dos últimos dez anos pouco ou nada tem sido feito pelo combate à corrupção em Portugal, e os resultados do CPI (Índice de Perceção da Corrupção) são expressos dessa deriva. Os sucessivos governos, e a classe política no geral, olham para este flagelo como uma coisa menor, sem cuidar de perceber que o desenho e implementação de uma estratégia capaz de prevenir e combater eficazmente a corrupção é determinante para o presente e o futuro do nosso país, e em particular em contexto de crise pandémica.”


No seguimento deste raciocínio, peço aos leitores para refletirem acerca do seguinte: quantos deputados conhecem e quantos acompanham a atividade política daqueles que elegeram?


A verdade é que o país se apresenta tão partidarizado que quando o eleitor se dirige às urnas, automaticamente pensa no partido e não no deputado que é cabeça de lista no seu círculo eleitoral. Ora, este fenómeno faz com que o escrutínio público à atividade política seja quase nulo.


O cidadão comum apenas se interessa pela atividade política quando algum fenómeno extremo e normalmente muito prejudicial acontece, referindo-me aqui principalmente ao colapso do setor bancário. Não me irei alongar neste setor porque daria outros 10 artigos completos, recordo apenas que entre BPN, BPP, BES, BANIF e Novo Banco foram enterrados 21 mil milhões de euros (dinheiro dos contribuintes).


Mas parece que a sociedade portuguesa não acorda ou simplesmente não quer acordar. Penso que noutro país da União Europeia o povo já teria saído à rua, já que o Governo não tem a decência de ele próprio se demitir ou de pelo menos demitir ministros (Eduardo Cabrita e Francisca Van Dunem). Olhe-se para o exemplo holandês. Cá não exigem retornos dos abonos de família, mas levam de rajada as poupanças de uma vida.


Fico estupefacto com a quantidade de escândalos, mas vou apenas enumerar alguns: Caso Tancos; Incêndios de Pedrógão; nomeação do Ministro das Finanças (Mário Centeno) para Governador do Banco de Portugal; SEF; mais recentemente, o caso de nomeação do Procurador Europeu e atrevo-me mesmo a referir a desastrosa gestão da atual situação pandémica.


Não sei o que será mais grave, se é o facto de António Costa ter feito parte da comissão de honra de um dos maiores devedores do BES (LFV) ou o facto de ter afirmado existir uma conspiração internacional contra o Estado Português no referido caso do Procurador Europeu.


Ora, da última vez que abri a Constituição penso ter visto lá pelo meio que Portugal era um Estado de Direito e que o escrutínio político é uma parte essencial da democracia.


Mas, mesmo assim, o masoquismo persiste. Sondagens divulgam que se houvesse eleições legislativas neste momento, o PS voltaria a ser eleito com cerca de 40% dos votos. Falo de 40% dos votos, caros leitores…


Estes valores ainda me causam mais perplexidade pelo facto de em resultado do processo “face oculta” terem sido condenados Armando Vara (ex-deputado e ex-ministro socialista); José Penedos (ex-secretário de Estado da Defesa e da Energia socialista); Paulo Penedos (ex-dirigente do PS e filho de José Penedos); Domingos Paiva Nunes (administrador multimilionário da EDP e primo de José Sócrates), entre outros.


No seguimento, o ex Primeiro-Ministro José Sócrates ainda teve a proeza de ser a figura principal no processo “Operação Marquês”, estando acusado de 3 crimes de corrupção passiva de titular de cargo público, 16 de branqueamento de capitais, 9 de falsificação de documentos e 3 de fraude fiscal qualificada, tendo mesmo estado em prisão preventiva.


No entanto, desengane-se quem pensa que a corrupção e estes disparates governativos estão apenas anexados ao Partido Socialista, antes tratando-se de um problema estrutural da classe política e dos vários governos, incluindo obviamente a coligação governativa PSD/CDS.


Estes três partidos não têm sido opções viáveis para o país nos últimos 20 anos e assim irão continuar, apenas vendo duas possíveis alternativas: uma reforma ética estrutural dentro dos dois principais partidos políticos ou a emergência de novas forças políticas que derrubem os poderes instalados.


A partir de todas estas ilações parecem-me óbvias as razões de aparecimento de um partido como o Chega e a sua proliferação. Parte do país encontra-se tão exausto e frustrado (e com razão) que não olha a meios para atingir os seus fins, indo à boleia de um oportunista disfarçado de salvador.


As eleições presidenciais não revelam que 500 mil fascistas saíram às urnas para votar no seu messias. As eleições revelam antes, 300 ou 400 mil pessoas, que não tendo na sua génese derivas racistas e xenófobas, votaram naquele candidato que lhes parece ser capaz de operar a mudança. Mudança essa aliás, que deveria ser uma preocupação de todos os portugueses, operada através de um movimento legítimo e realmente representativo dos problemas sociais, económicos e culturais de cada um de nós.


Acho impressionante o facto de ainda nenhum comentador político ter acertado uma única vez nas razões de crescimento do Chega, ficando ainda mais estupefacto com as posições e discursos dos partidos de esquerda e das candidatas à presidência da República, Marisa Matias e Ana Gomes.


Não são lábios pintados que irão reerguer o país das cinzas, mas sim um discurso e uma atitude séria, coesa, reta e sensata. Tudo o que não se enquadra nos adjetivos elencados são manobras de distração à estilo “chegano”.


Parece-me que existe outro problema óbvio: os media. Em quase todos os debates presidenciais o mediador fazia questão de chamar sempre alguém que não fazia parte deles.


Quando se debate a situação pandémica, quando se debate a TAP, Novo Banco, corrupção, ideologias e estratégias, o que é que interessa André Ventura?


Mas pergunto também, será que o futuro do país se deve discutir em meia-hora de forma apressada para depois dar uma novela? E porque é que os temas mais importantes do país são relegados para segundo plano nos canais “suplentes” e não em canal aberto e em horário nobre?


Parece-me claro que a extrema-direita não é solução nem nunca será, mas temos de parar de lhe dar razões para existir.


Miguel Baptista




 
 
 

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