O “flop” do processo de vacinação europeu
- policiasdadoxa
- 12 de mar. de 2021
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Por João Marques (Convidado)
A tentativa de ação concertada da União Europeia no processo de vacinação tem sido um total e completo “flop” e ameaça dividir ainda mais uma Europa, já bastante fragmentada.
À data que escrevo, os 27 Estados da União Europeia administraram a primeira dose a cerca de 6% da população, muito aquém dos EUA (cerca de 15%) e do Reino Unido (cerca de 30%), levando alguns britânicos pró-Brexit a reivindicar os louros.
O processo de negociação com as fornecedoras tem sido, no mínimo, penoso. Entre atrasos e subfornecimentos, a UE viu-se obrigada a ameaçar bloquear as exportações da fornecedora AstraZeneca para fora da Europa, a Itália efetivou recentemente esta ameaça bloqueando a exportações para Austrália.
Não obstante a trapalhada destas negociações pouco transparentes, há mais a apontar, nomeadamente a lentidão com que a Agência Europeia do Medicamento encara a aprovação de novas vacinas no espaço europeu. Já várias vozes dentro das economias europeias têm vindo a pedir a diversificação do fornecimento das vacinas para fazer face ao atraso e à escassez, e com razão.
Em inícios de fevereiro, um estudo Britânico realizado por “The Lancet” revelou que a vacina russa Sputnik V tem uma eficácia de cerca de 92% na proteção contra a Covid-19. Desde então, a hesitação da Agência Europeia do Medicamento a aprovar o uso da vacina tem incomodado vários países. A dificuldade em apressar processos burocráticos numa altura tão crítica não tem grande cabimento, sem ser à luz de algum preconceito político ou negligência, o que levou mesmo à realização de acordos bilaterais por alguns países à revelia da Europa para a administração da mesma.
A proximidade e cumplicidade entre Orban e Putin é conhecida, logo não foi de todo surpreendente que a Hungria fosse o primeiro país da Europa a aprovar a administração da vacina sem autorização da Agência Europeia. No entanto, não é caso único. A Eslováquia, mais recentemente, também autorizou a sua administração. A Áustria já está em negociações e suspeita-se que o próprio Luxemburgo possa seguir o mesmo caminho. A República Checa está, atualmente, com os piores números de sempre, e também se prevê que possa abrir a porta a esta via.
O facto de estes países não esperarem pela luz verde para entrar em negociações demonstra uma desconexão cada vez maior entre os fundamentos europeus e os seus estados-membros. Alguns países europeus, cuja definição de democracia levanta dúvidas (como a Hungria), vão-se isolando cada vez mais do ocidente, ao mesmo tempo que melhoram o relacionamento com o vizinho, não menos autoritário, Russo; já os países “bem comportados”, onde podemos inserir Portugal, abstêm-se de entrar em negociações com outras fornecedoras com receio que a “traição” à Europa possa ter represálias nas relações com Bruxelas.
Estes países “bem-comportados” (Portugal, Grécia, etc.) são os que veem a sua economia mais abalada com a pandemia. As restrições de mobilidade ameaçam destruir completamente o setor do turismo, que é dos poucos setores que tem vindo a impulsionar a atividade destas economias, já fragilizadas da anterior crise europeia e da péssima experiência da austeridade a que foram subjugadas. A Europa, numa tentativa pouco entusiasmante de “acalmar” estes países, começou a planear uma espécie de certificado de imunização europeu que permite as deslocações entre países. Apesar de algum entusiasmo (nomeadamente da Grécia), a própria OMS já veio desaconselhar estes certificados, visto não haver ainda evidência científica suficiente para aferir a duração ou mesmo eficácia da imunização. Além do facto de que o reduzido número de vacinados na Europa levanta questões sobre a legitimidade destes mesmos certificados.
Parece então evidente que a única maneira de aliviar os países europeus do sufoco em que se têm visto é através da agilização do processo de vacinação. Quanto mais demorado este for, mais tempo vai ser necessário recorrer a medidas de confinamento e restrição de atividade. Os períodos de abertura e desconfinamento são seguidos de um incontornável aumento do número de casos, que levam de novo ao confinamento e medidas mais apertadas, num ciclo insustentável, cujos efeitos já estão a ser sentidos pelas economias, e vão continuar.
Cabe então à Europa ser mais célere e competente na sua coordenação. Havendo mais fornecedores no mercado, é urgente que se comece a diversificar os mesmos. A Europa tem de deixar de lado os preconceitos ideológicos ou constrangimentos diplomáticos e melhorar o processo de negociação e distribuição das novas vacinas para tentar salvar o que pode vir a ser mais um ano perdido. Ainda há alguma esperança, visto que o regulador europeu divulgou que deve iniciar a autorização da Sputnik V nesta semana ou na próxima, mais vale tarde que nunca.
No meio desta trapalhada política, os europeus vão sofrendo e o projeto europeu perde credibilidade. Através da ação concertada, a Europa tinha a oportunidade de sair da pandemia mais solidária e coesa. No entanto, está claramente a perder essa oportunidade, arriscando-se a sair desta terrível fase ainda mais dividida e vulnerável.
João Marques (Convidado)

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